sexta-feira, 22 de junho de 2012

Olhando O Mar...Conto...Gabriel de Sousa

OLHANDO O MAR...
Conto 
Gabriel de Sousa
Desde que me reformei, todos sabem onde me encontrar. Quando não chove, subo à falésia, por um caminho que só as pessoas desta zona conhecem, e fico lá bem no alto olhando o mar imenso. A paisagem e o silêncio dão-me a calma há tanto tempo desejada. Por vezes, na linha do horizonte, vejo pequenos pontos que, a pouco e pouco, se aproximam e se tornam maiores. São paquetes em trânsito que seguem as suas rotas. Em breve voltarão a diminuir, até se tornarem de novo minúsculos pontos que desaparecem. Nestas ocasiões, comparo os barcos à nossa própria vida. Nascemos do nada, crescemos, por aqui passamos e vamos desaparecendo aos poucos, até nos transformarmos de novo em “nada”. Revivo então o meu passado, as pessoas que conheci e que me marcaram. Algumas já as esqueci. Outras estão guardadas bem fundo no meu coração e tenho dificuldade em escolher uma só, porque cada uma delas, a seu modo, influenciou momentos importantes da minha vida.

Filho de mãe solteira, que me deu o nome de Miguel, fui criado por um casal, com tudo o que isso implica na educação, na instrução e também no amor (ou na falta dele). Considerei-os sempre como verdadeiros pais, se bem que tenha mantido frequentes contactos com a minha mãe até ela falecer. Mais tarde compreendera que o seu gesto, ao entregar-me a “pais adoptivos”, tinha sido um acto de coragem. Que me teria acontecido de outra forma, com uma mãe solitária, pobre e a necessitar de trabalho para sobreviver?

Como poderei esquecer também aquele professor de Português, alentejano de Vila Viçosa, que me incutiu o gosto pela leitura e pela escrita? Para além da “nota” habitual, premiava as melhores redacções dos seus alunos com livros, alguns de sua autoria. Era seu costume entregar-nos folhas com pequenos trechos de autores portugueses, pedindo que as completássemos a nosso bel-prazer e segundo a nossa imaginação. Um dia, ainda não muito distante, ao passar num alfarrabista, vi um pequeno livro com um “resumo da história da literatura portuguesa” da autoria do meu antigo professor. Pensei comprá-lo, mas lembrei-me que ainda o deveria ter numa das estantes lá em casa. Procurei-o e li: «1º Prémio – Redacção sobre a “Cidade e as Serras” de Eça de Queirós». A dedicatória estava escrita e assinada com tinta permanente verde, como era hábito do saudoso Mestre.

Por vezes fecho os olhos para melhor poder recordar… Os amigos da escola e do liceu, alguns professores, os colegas do desporto, os treinadores e professores das diversas modalidades desportivas que pratiquei, os camaradas do trabalho e do sindicalismo, aqueles que conheci nos clubes de que fiz parte e nos jornais e revistas onde escrevi. Por vezes quase adormeço e sou despertado nos meus pensamentos pelo chilrear de pássaros, volteando ao redor, poisando aqui e ali, à procura de pequenos grãos para se alimentarem. Lutam pela vida a cantarolar. Por falar em lutar, lembro-me do “Patilhas”. Este sim, talvez tenha sido a pessoa que mais marcou a minha vida. Como não me lembrara ainda dele? Imperdoável! Que fraca está a minha memória!

Fizemos a recruta juntos. Sérgio era um valoroso ribatejano, moço de forcados num grupo de Vila Franca de Xira. Valente como se pode imaginar. Porém, nas sessões de educação física, tinha medo até de saltar o plinto, o que fazia dele o alvo da chacota geral, havendo mesmo quem duvidasse das suas actividades tauromáquicas. Era conhecido pela alcunha de “Patilhas” não só por usar este adorno capilar, mas também porque era um ás a descobrir objectos perdidos. Na época, estava na berra um conhecido programa radiofónico humorístico, que se chamava justamente “Patilhas & Ventoinha”, aventuras e desventuras de dois detectives privados. É bem verdade, porém, como se verá a seguir, que há circunstâncias em que “o medo transforma o homem num quase herói”.
Fomos mobilizados para o Ultramar, mais precisamente para a Guiné. O teatro das operações punha diariamente à prova a nossa resistência. Em cada missão de patrulhamento, temíamos as emboscadas, pois ninguém sabia o que se encontrava dentro e por trás das espessas matas. Não havia estradas nem sequer picadas e o caminho era muitas vezes aberto a golpes de “catana”. A pouco e pouco, alguns carreiros ficavam marcados, à força de tantas vezes por lá passarmos, mas então novos perigos se adivinhavam - as temidas minas anti-pessoal.
Num fim de tarde, durante uma missão, fui atingido por várias balas e caí a esvair-me em sangue. Sérgio olhou para trás e não pensou duas vezes. Os outros tinham seguido, talvez sem se aperceberem, no meio do ruído de tanto tiroteio. Veio socorrer-me, expondo o seu próprio corpo a outras balas.
- Salva-te que eu estou perdido! Gritei-lhe.
Mas o “Patilhas” avançou de rastos até junto do mim, pediu-me para lhe estender as mãos e arrastou-me para dentro da mata. Ali ficámos algumas horas, na esperança de que alguma patrulha passasse por perto. Entretanto, Sérgio despiu a farda e das suas peças fez garrotes para estancar o meu sangue. De manhã, descobriu que estávamos perto de um dos muitos rios navegáveis que caracterizam a orografia deste território. Encontrando ainda forças, onde elas já não deveriam existir, puxou por mim quase até à beira da água. Avistámos um barco da Marinha que fazia a sua patrulha. Sem roupas para poder acenar, não querendo dar tiros para não chamar a atenção dos guerrilheiros que poderiam encontrar-se ainda naquela zona, Sérgio não teve outra solução senão pôr-se aos pulos gesticulando para o barco. Felizmente que foi avistado e um bote pneumático foi enviado ao nosso encontro, recolhendo-nos. Chamado pela rádio, um helicóptero veio buscar-me e transportou-me para o Hospital Militar de Bissau. Fui repatriado para a metrópole meses mais tarde, onde cheguei num mês quente de Agosto dos anos “sessenta”. Quando soube do regresso a Portugal do meu pelotão, fui esperá-los ao Cais da Rocha. Vendo ao longe o paquete “Pátria”, o meu coração bateu descompassadamente. O reencontro com Sérgio foi selado com um longo e apertado abraço. Ainda hoje, quando me lembro, sinto as lágrimas a deslizar, cavalgando cada ruga da minha cara. Como gostaria de ter aqui, agora, à minha frente, o amigo a quem eu ficara a dever a vida. Tantas coisas tinham ficado por dizer.
Só o tornei a ver uma vez que me desloquei a Vila Franca de Xira. Sérgio trabalhava numa sapataria e continuava a ter aquele seu ar tímido e apagado. Usava ainda as patilhas, que eram a sua “imagem de marca”.

É tarde. Vou descer a falésia e regressar a casa. Graças ao Patilhas pude singrar na vida, casar, ter duas filhas e um neto, a quem foi dado, a meu pedido, o nome de Sérgio. Eles são verdadeiramente os meus dois heróis. Um marcou a minha vida desde os tempos da Guiné; os dois continuarão a marcá-la enquanto eu andar por cá.

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