sábado, 16 de junho de 2012

A Dança Era A Minha Paixão...Conto...Gabriel de Sousa

A DANÇA ERA A MINHA PAIXÃO
Conto
Gabriel de Sousa
Margarida começou a dançar quando ingressou no jardim infantil, em que os pais a inscreveram. Nos dias festivos ou no final dos períodos, era das que mais se salientava, interpretando papéis de dançarina. Ainda hoje se lembra de ter representado, juntamente com as coleguinhas, “O Boneco de Neve”, que fez a delícia de todos os pais, surpreendidos com a graça e maturidade das suas filhotas.
Quando entrou para a escola, os pais matricularam-na igualmente no Ballet, um modo de aproveitar de forma útil os tempos mortos da hora do almoço ou enquanto esperava a chegada do pai ou da mãe, que a iam buscar ao fim do dia. Aqui, já tinha uma professora especializada e até sapatilhas apropriadas. Aprendeu também, com facilidade, todos aquelas palavras estrangeiras, geralmente francesas, que fazem parte da terminologia da dança clássica. No final de cada ano e no dia do seu patrono, a escola organizava festinhas em que, a par da ginástica e de outros desportos, o ballet também tinha o seu espaço. Por volta do 10º ano, Guidinha (como lhe chamavam os pais e os amigos) mostrou interesse em seguir a carreira de bailarina, começando a fazer projectos nesse sentido.
Depois de completar o 12º ano, ingressou na Escola Superior de Dança e, mais tarde, na Companhia Nacional de Bailado. Fez parte de várias tournées em Portugal, apresentando-se igualmente em alguns festivais no estrangeiro, como Amesterdão, Berlim e Moscovo. Na capital russa, actuaram mesmo no mítico Teatro Bolchoi, o que ficou a constituir um momento inesquecível das suas vidas.

«Aproveitando umas férias, desloquei-me ao Brasil com os meus pais. Fomos para casa de familiares que moravam no Rio de Janeiro, perto de Copacabana. Adorei. A minha prima Márcia também fazia ballet numa Academia e convidou-me para ir com ela. Fiquei de tal modo entusiasmada que, perto da data do regresso, pedi aos meus pais para ficar mais uns tempos. Telefonei para Lisboa para pedir autorização e justificar a minha ausência durante cerca de um mês, acrescentando que estava aprendendo muitas coisas com uma professora russa (Olga Feodorova) que leccionava naquela escola. Não me levantaram nenhum problema, dada a ausência de qualquer espectáculo programado e, assim, só regressei a Lisboa um mês mais tarde.
A pouco e pouco, fui sendo escolhida como solista de alguns bailados, já recebia salário de profissional e começava a sentir-me realizada.
O Royal Ballet britânico ofereceu duas bolsas de estudo para um estágio de dois meses em Londres. Fui uma das escolhidas. Passei uns tempos magníficos com a Rosário e os colegas ingleses. Aprendi muito. Tinha imensas saudades dos meus pais quando voltei a Portugal mas, paradoxalmente, gostaria de ter ficado na Grã-Bretanha, pelo menos mais uns tempos.
Fomos entretanto convidadas pela autarquia de Portimão para apresentar um bailado no Algarve. Fui no meu carro e levei três colegas. Já depois de entrar em terras algarvias, fomos abalroados por uma viatura que vinha em contra-mão. O choque foi tremendo. Eu e a colega que vinha à frente tivemos de ser desencarceradas pelos bombeiros. Não me lembro de quase nada. Devo ter desmaiado, pois quando acordei já estava no Hospital de Faro».

Logo que foi possível, Margarida foi transferida para um hospital de Lisboa. O acidente saldara-se pela fractura exposta de uma perna e por uma lesão muito grave na anca. Foram-lhe feitas várias cirurgias, uma delas para lhe implantar uma prótese. Os médicos foram-na mentalizando para o facto de ser impensável prosseguir a carreira de bailarina. Recebeu a visita de um psicólogo clínico.
Quantas vezes ela chorava, quando estava sozinha. Se alguém se aproximava da cama, logo cobria a cabeça com o lençol fingindo que estava a dormir. «Como ia ser o seu futuro?» - perguntava-se muitas vezes, ao ver que se tinham esboroado muitos sonhos e o sentido da sua vida.
Quando saiu do hospital, ainda esteve uns dias em casa. A primeira vez que saiu, foi visitar a “sua” Companhia Nacional de Bailado. Abraçou colegas e professores e chorou convulsivamente, pois não se pôde conter mais. Obcecada como estava pela sua situação de dançarina, nunca lhe tinha ocorrido que poderia enveredar pela carreira do ensino ou de coreógrafa. A ideia foi-lhe dada por uma professora.
No princípio do ano lectivo seguinte, inscreveu-se na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa. Tinha algumas dificuldades inerentes à sua “deficiência”, mas as coisas não lhe correram mal.
Concluiu o curso e, meses mais tarde, em colaboração com um colega, que se especializara em Educação Física, abriu um Ginásio em que davam aulas de Ballet e de Ginástica. O sonho de Margarida era porém coreografar bailados e apresentá-los em público. Continuou a estudar muito, via muitos filmes sobre dança e não faltava a nenhum espectáculo de ballet, deslocando-se por vezes até ao estrangeiro.
Veio a formar o seu próprio Grupo, escolhendo as melhores das alunas e algumas bailarinas do exterior. Começou então a apresentar as suas coreografias, que foram - sem excepção - muito bem recebidas pelo público e pela crítica. Isto fez com que aumentasse o número de alunos inscritos no Ginásio e que recebesse também muitos convites para actuações, não só de vários pontos do País mas igualmente do estrangeiro.

«Tive uma carreira brilhante e, afinal, dentro daquilo que era a minha paixão - a dança. Porém, talvez tivesse preferido ser apenas bailarina, mas o destino não o quis. Agora, já começava a senti-me velha e cansada. Tive de parar.
- Quer tomar um chá?»
Perante o meu assentimento, afastou-se em direcção da cozinha. Embora coxeando um pouco, mantinha um ar sereno e altivo.
Aquela senhora idosa, já de cabelos completamente brancos, que me faziam lembrar fios de prata, ao contar-me em traços largos a história da sua vida, parecia ter rejuvenescido. (Não sei porquê, recordei-me de uma peça de teatro que vi há muitos anos: “As árvores morrem de pé”, interpretada pela actriz Palmira Bastos, então com quase noventa anos).
Cada vez que Margarida Vilar falara de ballet, eu tinha visto nos seus olhos o lampejar de luzinhas muito brilhantes. Voltou, trazendo numa pequena bandeja duas chávenas de chá e um açucareiro. Serviu-me, sentando-se depois no sofá para também ela beber. Nem um tremor nas suas mãos!
Agarrou numa pequena caixa de música, que estava em cima da mesa, e pô-la a tocar. Em cima da tampa rodava uma bailarina em pontas. Olhou pela janela como se procurasse o infinito. Ou talvez o passado. Virou-se para mim e disse-me, com um sorriso que jamais esquecerei:
«- Obrigado por me ter feito lembrar tantas coisas, que estavam guardadas e esquecidas nas gavetas da minha memória. Senti-me mais nova, quase empolgada, ao recordar o grande amor da minha vida. Ainda bem que não casei. O meu marido teria tido ciúmes...». E soltou uma gargalhada fresca e cristalina, como se tivesse apenas vinte anos.

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