sábado, 22 de janeiro de 2011

João Rui de Sousa Quarteto para as Próximas Chuvas...


João Rui de Sousa
Quarteto para as Próximas Chuvas
João Rui de Sousa — Quarteto para as Próximas Chuvas
João Rui de Sousa — Quarteto para as Próximas Chuvas. Lisboa: Dom Quixote, 2008.
O título do último livro de poemas de João Rui de Sousa aponta, por um lado, para a estrutura quadripartida do volume e, por outro, para o carácter preocupado da voz que, em diferentes modulações, nele se faz ouvir. Cada uma das quatro partes em que a colectânea se divide tem o seu título, que sugere aquela que é aí a linha dominante e não exclusiva, dado que as partes não funcionam como unidades isoladas, imunes à contaminação das outras. A primeira, «Algumas asserções sobre o real», insere-se numa orientação que, desde cedo, se afirma na lírica de João Rui de Sousa, a de uma poesia que não teme o contributo da reflexão para o seu delineamento, não apenas uma reflexão sobre o «real», como o título, na circunstância, poderia fazer crer, mas, mais amplamente, sobre o ser, como o verso inaugural do poema de abertura deixa perceber:
O ser é transformável e transforma-se
(p. 13)
O que, aqui, sobressai é uma concepção do ser sujeito à mudança e continuamente se refazendo (p. 13-5). A dimensão oscilante do ser é retomada na segunda parte, «Oscilações e penumbras», de modo, porém, a acentuar o «traço escuro» (p. 37) da existência, o que nela há de «amargura» (p. 35) , de «desencontro» (p. 49), de «desalento» (p. 51), de «descrença» (p. 43), acrescentando o poeta à condição, heideggeriana, de pastor do ser, a de pastor «de um rebanho de dúvidas» (p. 43). Na terceira parte, «Fulgurações», temos o contraponto da atmosfera de negatividade e pessimismo que dominava a anterior e, de alguma forma, também já a inicial. É o sobressalto lírico que, aqui, prevalece, e o entusiasmo que frequentemente o acompanha e que a apóstrofe, melhor que nenhuma outra figura, traduz. O poeta abre-se ao sentimento de plenitude («são cálidos caminhos animados / crescentemente em nós», p. 80) ou à volúpia da sua memória, que a natureza lhe devolve:
Eram estas as flores que eu abraçava
e que entrevia em zonas de mais luz
ou em simples requebros onde a voz,
pausada e quase trémula,
seguia na inflexão de ser inúmero
o vulto das ameixas, o voluptuoso
ondeio de fenos e searas,
e o parco mover do sobro
e das palmeiras.
(p. 86.)
A «angústia» e a «incerteza» (p. 91) não desaparecem, todavia, a fragilidade do homem entre o tudo e o nada permanece, os ventos, imagem da impermanência, lho lembram a todo o momento. Na contemplação extasiada da natureza, na percepção aguda, fulgurante, da sua força, pode o poeta, no entanto, encontrar um forte motivo de consolação e colher, para o recorte da sua voz, um exemplo de afirmação indómita:
A explosão do mar é uma luz viva
por onde crescem chispas de fragor.
E não há paz que negue este confronto
nas águas rebentadas, estilhaçantes.
E não há som que imite esta disputa
de espumas salgadas e areias.
Não há barulho igual ao deste estrondo
refeito de cadência e de furor.
Uma e outra e outra e outra vez,
estas canções retumbam, inclementes.
E não há muros que lhe ponham cobro.
E não há sol que dome ou circunscreva
o cenho desses uivos e marradas.
(p. 101.)
Raramente em tempos mais recentes um poeta terá celebrado, entre nós, com idêntico poder verbal, e uso tão desperto dos sentidos, a natureza no seu dinamismo, na inclemência das forças que a movem, como nesta «Rebentação».
No que poderemos considerar o último andamento de um livro que se coloca sob o signo de uma leitura de aproximação à música, não apenas no género inscrito na abertura do título como na sugestão profética contida nesse mesmo título, a lembrar uma conhecida composição de Messiaen, o poeta inclui um conjunto de reflexões sobre o seu ofício, o seu fazer poético. Dessa reflexão metapoética, colocada sob o título «O rosto (o rasto) da escrita», reteríamos, destacando-as, duas notas que nos parecem de grande relevância para o entendimento da sua poética, uma em que, em «Que formalismo?», se recusa a abdicação da função comunicativa da poesia («É sempre um homem que / por elas [as palavras] fala, / é sempre um coração / que aí adeja!», p. 125), e outra em que orgulhosamente se afirma, em «Ir pelo mais largo», o propósito de uma mais funda e mais ampla liberdade, de uma, afinal, irrestrita liberdade:
Irei pelo mais largo,
pela máxima amplitude de voz
e de palavras
(p. 140.)

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