quarta-feira, 15 de junho de 2011

Rio de Janeiro...Crônica(julho de 1980) Gabriel de Sousa (poeta2811)


Cidade do Rio de Janeiro
RIO DE JANEIRO
Crônica
(Julho de 1980)
 
Gabriel de Sousa
(poeta2811)
ONDE SE FALA DO PAPA E DE VINICIUS ...

Na praia de Copacabana, o vendedor de sorvetes, correndo pela areia, deixa de lançar seu pregão. A voz rouca, ecoa estranhamente por entre corpos bronzeados, estendidos languidamente, ao sol doce-quente do Inverno carioca : « O Brasil inteiro está de luto ! Morreu o poeta Vinicius de Moraes! » - Assim me chegou a notícia da morte do inesquecível e fabuloso Vinicius, ocorrida duas horas antes. Triste recordação de umas curtas férias no Rio de Janeiro que, curiosamente, haviam começado também com outro acontecimento notável : - a visita do Papa.
Durante dias, nos vários canais de televisão, na rádio e nos jornais, ouviu-se falar dos trabalhadores, dos seus problemas e da sua força; dos oprimidos e da necessidade de acabar com a opressão; dos índios e do genocídio que os vai extinguindo («O Brasil não foi descoberto, foi conquistado. Nós já cá estávamos»); dos favelados e da necessidade de habitações condignas.
Visita histórica e necessária, pois o povo brasileiro pareceu-me imensamente crente, crente em tudo, desde religiões a espiritismo, passando por todos os seus derivados. Talvez não acredite por enquanto em si próprio, mas esse tempo virá e a igreja progressista brasileira parece estar do lado certo, do lado dos oprimidos. É pena que não seja assim em todas as latitudes ...
Porém não nos iludamos. Aquilo não será sempre assim ... Refiro-me à liberdade de expressão. O Papa com a sua visita, fez o milagre ... Milagre decerto incómodo para os «senhores» lá do sítio. Algumas observações, embora apressadas, parecem prová-lo:
- Tendo perguntado numa banca, qual era o jornal progressista que se vendia mais, o «cara» olhou-me com ar desconfiado mas sempre foi dizendo : -«aqueles (e apontou) são os mais apreendidos». Elucidativo ?
- No dia seguinte, chegou-me às mãos uma circular não assinada e deixada por mãos misteriosas nas bancas dos jornais : «Senhor jornaleiro, talvez sem saber, vem colaborando para o aumento da propaganda comunista em nosso País, vendendo algum, ou até mesmo todos os jornais abaixo relacionados. Para o bem da nossa Pátria, exigimos que o senhor, e seus colegas, parem de vender os seguintes jornais : (segue lista de 11 títulos). Certos da sua colaboração, desde já agradecemos; caso contrário, seremos obrigados a tomar atitudes drásticas». Abertura ?
- Li no «Pasquim», órgão oposicionista : «De agora em diante, vai ser difícil apreender-nos. Todas as nossas matérias começarão assim : Como dizia João Paulo II ...». Censura ?
- Insolitamente, a visita do Papa transformou-se numa lufada revolucionária que varreu todo o Brasil. Esperança ?

Mas voltemos a Vinicius que, a seu modo, também optou pelo lado certo, pela defesa da Liberdade e dos Oprimidos. Quando lhe perguntaram um dia se era feliz, teve esta resposta lapidar : «Se me pergunta se sou feliz com a minha mulher digo de imediato que sim, muito. Mas se me pergunta sobre a minha felicidade como ser humano , a resposta é negativa. Como se pode ser feliz numa sociedade tão injusta ?».
Vinicius expirou após uma hora de esforços desesperados para arranjar um médico e uma ambulância. Quando esta última chegou, o coração de Vinicius parara há 10 minutos. Dez horas mais tarde, o seu corpo descia à sepultura, enquanto os acompanhantes entoavam em sua homenagem a «Garota de Ipanema» e «Está chegando a hora». Tudo se passou muito rápido. Demasiado rápido. Num abrir e fechar de olhos, o Mundo ficara mais pobre. À noite, em Ipanema, paradoxalmente sentia-se ainda mais viva a sua presença. No barzito, onde Vinicius se costumava reunir com a roda de amigos para construir os poemas e as letras das suas canções, podia ver-se uma vela a arder numa mesa abandonada ...Não muito longe, o letreiro de um outro bar – o seu – vinha lembrar-nos que ele decerto não temia a morte. Ironicamente o baptizara : Bar Cirrose ... Só morrem verdadeiramente, no entanto, aqueles que são esquecidos. Vinicius não o será.
Mal regresso a Lisboa, releio um dos seus livros e dou comigo a soletrar, letra a letra, sílaba a sílaba, verso a verso, um dos seus poemas. Será um poema já por demais conhecido, mas é sempre útil relê-lo; será sempre útil ver como se pode transformar «Em operário construído», o operário em construção . Saravah Vinicius de Moraes !

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