terça-feira, 16 de outubro de 2012

QUOTIDIANO INSTÁVEL...GABRIEL DE SOUSA


QUOTIDIANO INSTÁVEL

D
izem que há oitenta anos não havia uma crise assim. Alastrou pelo Mundo como nódoa de azeite em papel pardo. Quando os fundos comunitários afluíram ao nosso País, Portugal começou a viver “à grande e à francesa”, se é que esta frase ainda tem algum sentido. Auto-estradas, pontes, estádios… Exposição Mundial 1998, Europeus de Futebol 2004, Festivais de Música… Paralelamente, eram abatidos barcos à nossa frota de pesca e era quase desmantelada a agricultura. Aumentaram as importações. Diminuíram as exportações. Os políticos tomaram muitas opções erradas e o Povo endividou-se, pois os bancos tudo facilitavam. Os portugueses, porém, só podem ser considerados culpados na medida em que votaram em quem os governou e também porque “foram nas cantigas” do grande Capital. Portugal não poderia escapar à crise generalizada, mas – o que é mais grave – tem agora muito menos probabilidades de defesa e de recuperação.

R
odrigo começou a ver todas as fábricas e pequenos comércios da sua terra a fechar, o desemprego a aumentar por não haver alternativas e a fome e a pobreza envergonhada a fazerem-se sentir, coisa que não acontecia desde o tempo “da outra senhora”. Quando chegou a altura de encerrar a fábrica de lanifícios onde trabalhava, foi como se lhe tivessem puxado um tapete por baixo dos pés. Era já coisa esperada, mas há sempre aquela luzinha de esperança que faz com que acreditemos que tudo se resolverá pelo melhor. Muitas ideias acorreram em turbilhão ao seu cérebro atormentado: a Lurdes e a Sofia, sua mulher e filhota; o magro ordenado que levava para casa ao fim do mês; a renda da casa, a água, a electricidade, o gás, despesas que já pouco lhe deixavam para comer, sobretudo depois de Lurdes ter ficado desempregada. Sofia ia entrar para a escola no ano seguinte. Rodrigo recebeu o golpe como se tivesse sido abalroado em cheio por um camião TIR.

C
onseguiu, passado algum tempo, encontrar emprego num restaurante à beira da estrada da localidade. Tinha poucos clientes, pois a maioria das pessoas passara a viajar pela auto-estrada que fora construída ao largo. O patrão, que trabalhava na cozinha, fora franco. Só lhe poderia pagar um salário abaixo do ordenado mínimo. Teria as gorjetas (poucas) e duas refeições diárias. A clientela era agora constituída sobretudo por camionistas. Enquanto servia à mesa, ia ouvindo uma ou outra conversa: o preço dos combustíveis subia em flecha; a vida estava cada vez mais cara e os ordenados mais curtos; os impostos e os transportes não paravam de aumentar. Rodrigo, porém, já atingira outro patamar da desgraça. Lutava pela sobrevivência. O dinheiro que recebia não chegava para comer. Trazia todas as manhãs duas marmitas e a maior parte das suas refeições era levada para casa. Comia apenas um pouco para se ir aguentando. Juntamente com o pão, que comprava pelo caminho, levava a comida para a mulher e a filha poderem subsistir. Nos dias de folga, às segundas-feiras, chegou a peregrinar pelos caixotes de lixo, mas até estes estavam cada vez “mais pobres”. Uma vez, achou uma boneca quase nova. Só lhe faltava um braço. Assim que chegou a casa, mostrou-a à filha, que se agarrou às suas pernas com os olhos a brilhar de contentamento. Só esta união entre os três o mantinha vivo.

Q
ue poderia ele fazer para continuar a sobreviver? Roubar? – Não estava nos seus princípios e ele queria continuar a ser um exemplo para a mulher e para a Sofia. Pedir esmola? – Quem podia dar, passava ao largo; os outros, mal tinham para eles. Suicídio? – Deixaria as “suas duas meninas” ainda em piores condições. Morte colectiva? – Não seria capaz de interromper o ciclo das vidas da Lurdes e da filha, e o mundo dá tantas voltas que talvez viessem dias melhores. A esperança deve ser a última a morrer. Fosse ele um homem só e talvez já tivesse resolvido as coisas de outra maneira. A vida estava mesmo preta. Cada vez havia mais assaltos e roubos, alguns com violência. Mais gente sem abrigo. Várias vezes Rodrigo roçou a depressão, mas tentava acreditar que o futuro poderia ser mais risonho e arranjava sempre a força necessária para continuar a lutar.

U
ma noite, quando saía do restaurante, viu um senhor vir ter com ele.
- Foi a sua senhora que me indicou onde trabalhava e me disse a hora a que saía. O senhor Rodrigo Silveira morreu. Conhecia-o?
- Conhecia-o mal, pois só o vi quando ainda era criança. Era o meu padrinho. Foi ele que escolheu o meu nome. Sei que ele gostava muito de mim. Quando é o funeral? Mas eu não tenho dinheiro para os transportes nem sequer para flores! …
- Ele já morreu há cerca de um mês, no Brasil, onde passou os últimos anos da sua vida. Quer vir comigo para conversarmos um pouco? Eu sou o advogado dele. E, dizendo isto, entregou-lhe um cartão de visita: Waldomiro Saldanha – Advogado – Rio de Janeiro.
- Vou com muito prazer, senhor doutor, mas terei de passar em casa, para entregar esta comida à minha mulher, está bem?
- Vamos então. É este carro mesmo em frente. Em breve o seu calvário irá acabar, vai ver! – Disse com um sorriso enigmático.

R
odrigo Silveira emigrara para o Brasil há muitos anos. Mantivera sempre correspondência com os compadres e soubera mesmo do casamento do afilhado. Conhecia a sua morada, mas nunca escrevera ao “Rodriguinho”, como lhe chamava em pequeno, porque queria visitá-lo de surpresa quando viesse a Portugal. O destino assim não quis.
- O seu padrinho enviuvou há dois anos e nunca mais foi o mesmo homem. Definhava dia a dia e parecia adivinhar uma morte já próxima.
- Nunca tentou escrever-me ou entrar em contacto comigo?
- Não, mas contratou os meus serviços e, visto que não tinha herdeiros, fez um testamento a seu favor. Foi isso que lhe vim comunicar.
- Não posso acreditar!
- Pode acreditar mesmo. Ao longo dos anos, ele criou uma rede de pequenos super-mercados. Deixou muito dinheiro nos bancos e vários apartamentos no Rio de Janeiro e em Niterói. Se estiver de acordo, irei acompanhá-lo em tudo o que for necessário fazer, para entrar na posse dos bens que o seu padrinho lhe legou.

N
a manhã seguinte, Rodrigo acordou antes do despertador tocar, esfregando os olhos, meio estremunhado. Tudo não passara de um sonho. Lurdes ainda dormia. Levantou-se e, em cima da mesinha de cabeceira, viu um cartão de visita onde leu Waldomiro Saldanha – Advogado – Rio de Janeiro. Afinal era verdade. Estavam ricos! Valera a pena ter esperança! Rodrigo, Lurdes e Sofia iam começar uma nova vida. Infelizmente, nem todas as histórias acabam assim.

Gabriel de Sousa

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