quarta-feira, 11 de junho de 2014

SILVINO, PEDREIRO E POETA...Gabriel de Sousa

SILVINO, PEDREIRO E POETA
S
ilvino nasceu numa vila do Alentejo. O pai era trabalhador rural e a mãe fazia trabalhos de costura. Com sacrifício, porque o tempo era de vacas magras, conseguiram que ele completasse a instrução primária. Em breve, passou a acompanhar o pai, começando a aprender as lides do campo. Mais tarde, faria também recadinhos à mãe, entregando os trabalhos às freguesas e trazendo de volta a respectiva retribuição.
Quando regressava a casa, Silvino via sempre o senhor Teodoro, um simpático velhote de longa barba branca, que passava os dias sentado no pequeno degrau junto da porta de casa. Às pessoas que passavam, respondia sempre em verso e, outras vezes, era ele que tomava a iniciativa dirigindo-se-lhes do mesmo modo. Um dia, Silvino decidiu passar mesmo junto dele e logo ouviu a sua voz:

- O menino é meu amigo
Resolveu me visitar…
…Se ficar aqui comigo
Vou ensiná-lo a rimar.

E ali ficaram juntos, sentados lado a lado. Silvino aprendendo tudo o que Teodoro tinha para ensinar. Teodoro relembrando velhos tempos, em que tivera também assim, perto de si, o netinho Pedro, agora imigrado algures em França juntamente com os pais. E assim passou a acontecer quase todos os dias. Silvino estava encantado. Em breve, também ele já falava em verso, para os pais e para os vizinhos.

O
 tempo voa. Passa depressa demais. Aproximava-se a hora de Silvino ter de arranjar trabalho para ajudar nas despesas da casa. A vida estava cada vez mais cara, a mãe já não tinha tantas clientes como antigamente e o pai via-se em palpos de aranha para encontrar trabalho na agricultura.  
Silvino aconselhava-se muito com o “avô Teodoro”, como agora lhe chamava, e continuava igualmente a sua aprendizagem na arte de rimar. Um dia, com muita pena sua, concluiu que não tinha futuro ali na terra. Custava-lhe muito deixar os pais e também Teodoro, mas a decisão estava tomada. No fim-de-semana seguinte, abalaria para Lisboa.
As despedidas foram difíceis, com muitas lágrimas à mistura. Até o velhote chorou, como se dum familiar se tratasse. Apanhou a camioneta da manhã para a capital. Através da janela, via a paisagem a desfilar. Parecia estar a ver um filme.
A mãe dera-lhe um dinheirito para as primeiras impressões e Teodoro também lhe dera uma nota “grande” e um pedaço de papel. Silvino meteu a mão na algibeira e desdobrou-o para ler:

O Silvino é bom rapaz,
É a hora da partida,
Sei que ele vai ser capaz
De ganhar a sua vida!

Olhou para trás, como se quisesse vê-lo. Sorriu. Partira apenas há meia hora e já sentia imensas saudades.

M
al chegou a Lisboa, com a sua “malita de cartão”, procurou um alojamento. Encontrou uma pensãozita barata e foi dar uma volta, para comer e para tentar localizar uma zona em que houvesse obras de construção civil em curso. Tinham-lhe dito que nesta actividade era fácil encontrar trabalho e não eram necessários grandes conhecimentos nem muita aprendizagem. Entrou numa tasca para comer uma sopa, uns carapaus fritos com açorda e beber um copo de vinho, Desde manhã, só comera as sanduíches que a mãe lhe preparara. Aproveitou para obter algumas informações. Deu uma volta pelas ruas circundantes. Já sabia onde se dirigir no dia seguinte. Regressou à pensão. Deitado na cama, olhando o candeeiro do tecto, deu por si a pensar (também em verso):

Aqui estou eu em Lisboa,
À procura dum emprego
E de uma moça boa
Que seja meu aconchego…

A
dormeceu, dormiu bem e às 7 da manhã já estava na rua. Na segunda obra onde foi, arranjou logo trabalho. O mestre, depois de falar com o empreiteiro, até lhe ofereceu alojamento num contentor, enquanto não alugasse um quarto. Foi buscar a mala à pensão, que não era longe, e logo começou a trabalhar. Era tudo boa gente. Gostaram do Silvino, pois estava sempre bem disposto, fazia tudo de boa vontade e até falava em verso, fazendo quadras a torto e a direito. Começaram a chamar-lhe “o poeta”. 
Acabada aquela obra, passou para outra, outra e mais outra do mesmo empreiteiro. Alugara um quarto, onde estava mais à vontade. Todos os domingos escrevia duas cartas, uma para os pais e outra para o “avô” Teodoro.
Passaram-se vários meses em que foi feliz, dentro do possível. Até já catrapiscava uma cachopa da sua vizinhança. Infelizmente, porque «não há bem que sempre dure», a crise no País começou a agudizar-se e, mais acentuadamente, na construção civil. Os prédios construíam-se, mas quase ninguém os comprava. As empresas faliam e os trabalhadores iam aumentar a estatística dos desempregados. Silvino não foi excepção.

S
em trabalho e sem dinheiro, teve de deixar o alojamento e engrossar o exército dos “sem abrigo”. Pediu à senhora que lhe alugara o quarto, para lhe guardar as cartas que viessem pelo correio. No Alentejo, as coisas também não estavam famosas. Nem pensar em regressar.
Dormia onde calhava. Tinha como pertences apenas uma mochila com roupa e algumas folhas de cartão. Quando chovia, as dificuldades eram maiores, mas acabava sempre por encontrar umas arcadas ou um pátio, onde podia dormir sem lhe cair a chuva em cima nem encharcar os ossos.
Durante o dia, posicionava-se em zonas de algum movimento e, com um sorriso, ia fazendo as suas quadras a quem passava, As pessoas achavam-lhe piada, davam-lhe dinheiro e por vezes até lhe pediam para fazer mais versos. Nunca pedia esmola, mas – graças à sua “arte” – ia ganhando alguns euros para se alimentar. Não via qualquer luz ao fundo do túnel, pois a crise que assolava o País não parava de se agravar.
Continuava a escrever aos pais e ao senhor Teodoro, não contando todavia as provações porque estava a passar. Ia buscar as respostas à sua antiga “senhoria”, que gostava de o ver e sempre lhe ia dando uma sopinha quente e uma peça de fruta. Soube um dia, pelos pais, que o “avô” Teodoro morrera. Chorou silenciosamente e jurou a si mesmo, que lhe faria uma quadra popular junto da sua campa, quando voltasse.
Dizia sempre aos pais que estava bem, que era feliz e que um dia regressaria com bastante dinheiro. Sem o saber, Silvino estava a dar razão a Fernando Pessoa, quando este escreveu:

«O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.».

Gabriel de Sousa

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