quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Filomena...A Senhora das Ondas...Gabriel de Sousa

FILOMENA...
A SENHORA DAS ONDAS
A
 notícia correu célere por todo o bairro dos pescadores. O barco do Mestre Onofre não voltara da faina. Tinha naufragado. Segundo testemunhos de outros pescadores, tinha havido um grande temporal durante a madrugada com vagas medonhas. Alertadas as autoridades marítimas, em breve começavam as buscas, também com a ajuda dum avião da Força Aérea. Foi este mesmo avião que, após longos minutos de sobrevoo da zona, avistou o que deveriam ser os destroços. Os barcos que se dirigiram para o local confirmaram que os destroços pertenciam ao «Támar». Os coletes salva-vidas tinham-se soltado da embarcação e pairavam por perto, o que era mau sinal pois significava que não tinham sido utilizados. Das vítimas nem um sinal, mas já ninguém duvidava que tinham perecido. Todos eram casados. As famílias começaram o seu luto, esperando que a todo o momento aparecessem os corpos.
A cena repetia-se todos os Invernos. Os homens estavam conscientes que arriscavam a vida cada vez que se faziam ao mar. As mulheres sabiam que, mais tarde ou mais cedo, sentiriam a dor de perder entes muito queridos. Era uma espada de Dâmocles sobre as suas cabeças.
Passados poucos dias começaram a aparecer os corpos. Alguns deram à costa, outros apareceram a boiar. Só o do Joaquim não apareceu. Filomena – a sua mulher – desesperou e chorou tanto que as lágrimas se lhe secaram. Alguns parentes, e a vizinhança de um modo geral, providenciavam o seu sustento. A pobre passava os dias, sentada na praia, perscrutando o horizonte. Só quando a maré enchia e a água lhe chegava aos pés é que Filomena se levantava e dirigia para casa. Vivia ao ritmo das marés. Sempre vestida de negro. Agradecendo timidamente a comida que lhe davam e quase pedindo desculpa da sua triste condição. Ela não conseguia aceitar a morte do seu «Jaquim», pois a única imagem que dele guardava estava bem gravada na sua memória. E ele estava ainda vivo. Despedira-se dela com um longo beijo, um até logo, um acenar de mão ao virar da esquina.
Filomena definhava dia após dia. Da moçoila robusta de quase trinta anos pouco restava. Parecia uma velhinha, sempre triste, vestida sempre de luto e a falar sozinha (ou estaria a rezar?).

N
um dia do Inverno seguinte, estava a fazer quase um ano do naufrágio, Filomena como de costume dirigiu-se para a praia. Várias pessoas a viram passar e ficaram a olhá-la até à sua figura se desvanecer no nevoeiro.
Não mais a viram. Alguém disse que ela contrariamente ao habitual não se sentara na areia. Continuara a andar, lentamente, mar dentro. Outros acrescentaram que as ondas se tinham acalmado e que ela teria continuado a andar sobre a água. Outros diziam que ela parecia deslizar sobre o mar com a leveza duma bailarina.
Nunca se soube ao certo o que aconteceu a Filomena, mas o povo acreditou que teria sido algo de invulgar.
Mais tarde encontraram em Casa de Filomena um papel amarrotado e amarelecido, com uma oração. Ninguém soube explicar como lhe teria chegado às mãos.
Rezava assim: «Odoiá, Odoiá, Iemanjá – rainha das ondas, sereia do mar. Como é belo seu canto, senhora! Abra meus caminhos no amor e cuide de mim. Que as águas sagradas do oceano lavem minha alma e meu ser. Sou suas águas, suas ondas, e a senhora cuida dos meus caminhos. Iemanjá, em seu poder eu confio. Axé! Rainha das ondas, sereia do mar. Como é lindo o canto de Iemanjá. Faz até o pescador chorar. Quem ouvir a mãe-d’água cantar vai com ela paro o fundo do mar. Iemanjá! Iemanjá é rainha das ondas, sereia do mar.».

P
assaram muitos anos desde que ocorreram os factos descritos. Hoje, tenha sido tudo realidade ou seja lenda, a verdade é que os pescadores, antes de irem para a faina do mar, rezam a Filomena, lendo em surdina a oração que encontraram em sua casa e que circula agora de mão em mão. Acrescentam no fim: «Senhora das Ondas, roga por nós Pescadores, agora e na hora da nossa morte».                                                         

                                       Gabriel de Sousa - 2004
NB: - Menção Honrosa nos 34ºs Jogos Florais Internacionais de Nossa Senhora do Carmo – 2004 (Fuseta)

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